sábado, 30 de outubro de 2010

Nuno Ramos, Oiticica e o Brasil Diarréia

Martha Telles


Postei a matéria com Nuno Ramos à qual me referi em quase todas as últimas aulas. Nela, o artista explica um pouco do seu trabalho na 29ª Bienal de São Paulo, Arte e Política. A obra Bandeira Branca instalada no vão central do prédio inscreve-se na tradição (se já é possível falar em tradição de arte Brasil) do pensamento crítico de arte em nosso país. Nuno se percebe herdeiro e continuador dessa tradição, em meio a um momento de pouca reflexão nacional. “Acho que a gente está vivendo um tipo de desenvolvimentismo. Todo mundo eufórico, mas todo mundo muito cego. Quis romper isso com uma espécie de mau agouro que os urubus vão dar para o vão central, que é uma das coisas mais bonitas que o Niemeyer já fez, diz o artista.



Goeldi e Hélio Oiticica são referências explícitas em Bandeira Branca, que remetem a facetas menos luminosas e marginais de nossa cultura. Em Oiticica, particularmente nos Penetráveis, formula-se uma síntese de seu pensamento artístico e político. Como analisa Carlos Zílio, no texto Da Antropofagia à Tropicália, esse penetrável é a vivência da visão da cultura brasileira como “diarréica”. Em Brasil Diarreia, Oiticica identifica como nossas características impensáveis para um Brasil da década de 1960, em que predominava, no âmbito da cultura, a concepção do nacional popular. “A formação brasileira, reconhece-se, é de uma falta de caráter incrível: diarréica; quem quiser construir (ninguém mais do que eu ama o Brasil!) tem que ver isso e dissecar as tripas dessa diarreia, mergulhar na merda”. Seus trabalhos fazem uma incursão sobre os mitos populares. A estratégia é desarticular a estrutura de tais imagens a fim de provocar uma tensão interna que produza um questionamento dos participantes.


Em Tropicália (1967), o espectador é convidado a “penetrar” em corredores apertados e labirínticos, em tudo semelhantes a barracos de favela. Nesse ambiente sem saída, que não leva a lugar algum, escuta sons de fora e de dentro, que mais tarde  se revelam como o de uma televisão. Caminha-se por estruturas fixas geométricas que remetem às obras de Mondrian. São imagens táteis expandidas com a vivência do andar na areia, nas pedrinhas e nos tapetes espalhados pelo chão. “Eu queria nesse penetrável fazer um exercício de imagens em todas as suas formas”, declarou Oiticica. Os elementos imagéticos presentes no trabalho, como bananeiras e araras, a construção pobre típica das favelas, representavam o ambiente tropical e o lado “negativo” da sociedade brasileira, marginalizada nos morros. Entretanto, tais imagens idealizadas eram desconstruídas no processo de vivência, no apelo a todos os sentidos proposto no trabalho. Nas palavras de Hélio, “Tropicália era para definitivamente colocar de maneira óbvia o problema da imagem... Todas as coisas de imagem óbvia de tropicalidade, que tinham arara, plantas, areia, não eram para ser tomadas como uma escola [...] Foi exatamente o oposto que foi feito, todo mundo passou a pintar palmeiras e fazer cenários de palmeiras e botar araras em tudo”.

Tropicália sugere uma reflexão sobre o surgimento da cultura de massa no Brasil, o que colocava a necessidade de formular nova relação da arte local com a trama do tecido cultural brasileiro. Contra a diarreia geral, o artista propõe a noção de experimental: “que não só assume a ideia de modernidade e vanguarda, mas também de transformação no campo dos conceitos-valores vigentes; é algo que propõe transformações no comportamento contexto, que deglute e dissolve a coni-convivência. No final, Hélio sintetiza sua fórmula: "No Brasil, portanto, uma posição crítica universal permanente e experimental é elementos construtivos. Tudo o mais é diluição na diarreia."


Nuno Ramos reclama para seu trabalho o diálogo com a noção de experimental, tal qual formulada por Helio Oiticica e presente nas obras de Goeldi, Lygia Clark, Cildo Meireles, Tunga, Antonio Dias, para ficar com alguns. Bandeira Branca propõe uma reflexão crítica sobre as imagens nacionais consagradas como nosso modernismo, em particular com o musical e o arquitetônico. A tensão entre a face agourenta de nossa cultura e as belas curvas de Oscar Niemayer é elemento-chave do trabalho. De genialidade inquestionável, a arquitetura moderna de Niemeyer apresenta uma característica singularíssima, que muito fala de nós. Suas formas etéreas desvinculam a expressão construtiva para se entregar a gestualidade do desenho, evitando assim explicitar tensões concretas de sua espacialização. (ver dissertação Ana Paula Gonçalves Pontes, referência abaixo). Como dirá Argan, é exatamente a propriedade projetiva que confere um caráter autocrítico à forma. Tal propriedade seria responsável pela capacidade de sublimar na arte uma ação no mundo, ou seja, de recriar uma realidade.

Os urubus enlutados de Nuno desconstroem a imagem de um Brasil que vive a euforia da era do consumo no país de hoje. Nas palavras de Nuno, “é um momento de grande aceleração sem direção, um segundo desenvolvimentismo. Também há uma cegueira e falta de capacidade de projetar. É uma espécie de agora dilatado que o Brasil sempre vive. Somos o 'nunca antes neste país' eterno”. Evocam o lado mais sombrio, mais reflexivo, tencionando a imagem lúdica, otimista da obra de Niemayer. Uma desconstrução de uma imagem nacional.
Bandeira Branca é ainda uma crítica ao atual regime de hiperinstitucionalização da arte. É um antipenetrável, o espectador fica do lado de fora. A experiência apenas é possível pela visão através das grades, algo semelhante ao atual regime de fruição da arte que cada vez mais se refere à sua história e linguagem. Mas disso falaremos mais adiante.
Referencias bibliográfias e Links
PONTES, Ana Paula Gonçalves A Monumentalidade Flutuante de Oscar Niemeyer. In Diálogos Silenciosos, arquitteura moderna brasileira e tradição clássica. Dissertação de Mestrado. PUC-RJ. 2004( tese abertas PUC)
ZILIO, Carlos. Da Antropofagia à Tropicália. Revista Arte & Ensaio. EBA/RJ N 18, 2009.








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